"Temos de nos obrigar a parar, crianças precisam de tempo"

Atualmente, não são o mau-trato físico ou a negligência com a alimentação ou a higiene que predominam nos casos que são acompanhados pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Vizela. São antes a exposição das crianças à violência entre adultos ou a negligência face ao acompanhamento escolar ou à exposição exagerada às novas tecnologias que culminam em situações de bullying e cyberbullying.  Há ainda os perigos do consumo “normalizado” do álcool e o acesso fácil a substâncias psicotrópicas com consequências para a saúde mental dos adolescentes.

 

Qual é a importância de nos centrarmos na defesa dos direitos das crianças e pintarmos o mundo de azul?

Não sei se conhecem a história de uma senhora, nos Estados Unidos, que perdeu a neta numa situação de violência doméstica. A criança acabou por falecer e ela começou a andar com um laço azul na antena do carro em representação das nódoas negras nos netos. A ação ganhou dimensão internacional e há sempre caminho a fazer, porque vai sempre prevalecendo alguma forma de maus-tratos, sejam eles físicos ou emocionais, às vezes sob a forma de negligência ou omissão de cuidados, e que precisam de ser detetados para que possamos ajudar. Muitas vezes, a criança nem sequer sabe, nem tem como saber, que aquilo não é normal, porque é a realidade que vive no dia a dia. Quando são vítimas de maus-tratos físicos, as crianças acreditam que merecem e não há criança que mereça que lhe batam, sendo que isso tem um impacto emocional enorme no seu desenvolvimento. Daí a importância de estas conhecerem os seus direitos o mais cedo possível e as escolas fazem, nesse campo, um excelente trabalho desde o Pré-Escolar.

 

No raio de ação da CPCJ de Vizela, quais os direitos das crianças que, mais vezes, são colocados em causa?

A negligência que víamos de crianças que eram deixadas sozinhas em casa, muito pequeninas, que andavam mal-cuidadas ou mal alimentadas, já não é a nossa realidade. Não quer dizer que não apareça um caso de vez em quando, mas é muito raro. Atualmente, as crianças são negligenciadas de outra forma, ou porque os pais não têm tempo para estar em casa ou porque é mais fácil pôr-lhes o telemóvel na mão, porque têm todas as outras tarefas para fazer e aquela criança acaba por estar sozinha, isolada, negligenciada nos campos afetivos e emocionais. Também nos aparecem cada vez menos situações de maltrato físico, no entanto, temos a exposição à violência física nos adultos, que acaba por ser um maltrato psicológico para a criança, ou seja, o seu bem-estar emocional fica comprometido. Como outros direitos, de que é exemplo, frequentar a escola até aos 18 anos, sendo que os pais têm a função de acompanhar os filhos no seu percurso escolar de forma positiva.

 

Quais os principais problemas que enfrentam hoje as famílias?

Eu começaria pelas tecnologias. A Organização Mundial de Saúde recomenda que uma criança até aos dois anos não tenha qualquer tipo de acesso às tecnologias. Mas vamos para a rua e vemos constantemente crianças muito pequeninas a tocar nos ecrãs e os pais até acham que a criança é muito inteligente, porque já consegue fazer isto ou aquilo… Mas isso não significa que a criança seja mais inteligente que as outras, muito pelo contrário, as APP são intuitivas, ou seja, são concebidas para que qualquer pessoa o consiga fazer, sem ter de pensar muito.  O que acontece é que, enquanto ela está no ecrã, não está a aprender, porque não está a brincar, não está a explorar, não está a comunicar e ela precisa de fazer essas coisas todos os dias, constantemente, para atingir o seu maior potencial. Nós temos um número cada vez maior de crianças com atraso de linguagem com seis, sete ou oito anos. Como é que damos a volta a isso? Reduzindo o acesso aos ecrãs, porque eles não exigem que as crianças falem e assim não treinam. Se a mãe ou o pai parar o seu telemóvel e começar a falar com a criança, mais cedo ou mais tarde, ela sentirá necessidade de comunicar. Isto é essencial para evitar o atraso na linguagem.

As consequências da exposição demasiada aos ecrãs e às tecnologias vão depois em crescendo acompanhando a idade das crianças e jovens, que são capazes de passar quatro, cinco ou seis horas, quando a recomendação é que nunca ultrapassem uma ou duas horas. Elas estão isoladas, sem trabalhar competências sociais e com maior probabilidade de desenvolver problemas de saúde mental e isso é extremamente visível nos adolescentes. Além disso, porque no ecrã existe uma elevada e rápida sugestão de conteúdos, as crianças acabam por ter mais dificuldades na escola. Como é que podemos pedir a uma criança cujo cérebro está a ser treinado para andar a uma velocidade brutal para que chegue à escola e abrande, porque é isso que estamos a pedir às crianças.

 

Na adolescência, as dificuldades agravavam-se?

Sim, porque há aqui uma questão muito importante: os pais sabem acompanhar o que os filhos estão a fazer nas tecnologias? Sabem se são vítimas ou se provocam cyberbullying? Sabem quais são as apps que os filhos frequentam e com quem é que trocam mensagens? O “grooming” existe e trata-se de um fenómeno que envolve adultos que tentam agradar e manipular as crianças para ganhar a sua confiança. Isto acontece com muita facilidade através da internet. Se formos falar em literacia de segurança na Internet, agora com a Inteligência Artificial, temos de ter ainda muito mais cuidado e a verdade é que a maioria dos pais não sabe utilizar produtos de controlo parental e que são extremamente importantes nas idades mais jovens.

A realidade da violência do cyberbullying é uma constante. Se formos a um grupo de WhatsApp de uma turma, veremos, sem dúvida, pequenas coisas que fazem uns aos outros que são bullying, mas que eles, muitas vezes, nem têm noção disso.

 

Estamos a falar de que tipo de comportamentos?

Chamar a atenção para o aspeto físico de alguém, além de que é muito frequente chamarem nomes uns aos outros e aceitam aquilo como sendo completamente normal. Infelizmente, vou acompanhando algumas destas situações e pergunto-me: mas não há pais que veem isto? Respeitar a privacidade do jovem não é deixá-lo fazer tudo o que ele quer, sem nenhuma orientação ou supervisão.

 

O que podemos chamar de bullying?

Atualmente, tudo é considerado bullying. Eu acho que há aquelas farpinhas que a gente manda e que até são importantes para nos fazerem amadurecer. É bullying quando é sistemático e aquela criança recebe aquele tipo de tratamento há uma semana, sendo sempre a ser o alvo das partidas, do gozo, da agressão física… Sabemos que faz parte da adolescência tentar desafiar as relações, e ver até onde é que elas vão e isto faz parte da aprendizagem, mas quando persiste no tempo e é sempre a mesma a ser a vítima, é bullying, sem dúvida nenhuma.

 

Na CPCJ de Vizela têm registado casos de bullying?

Neste momento, não temos nenhum caso ativo mas, no início deste ano, tivemos a sinalização de várias crianças por agressão. Em termos globais, dentro do número total de processos, não será significativo, mas tendo em vista que decorreu num curto espaço de tempo foi um número muito maior do que o habitual. Estamos a falar de adolescentes a praticarem bullying sobre outros adolescentes. Estas práticas tomam, por vezes, uma proporção maior porque acabam por ser grupos contra uma criança só.

 

As escolas são hoje locais mais ou menos seguros do que há uns anos?

As escolas estão a ser confrontadas com desafios diferentes. Isto do Governo não querer tomar uma medida em relação às tecnologias nas escolas, porque há quem diga que vai contra os direitos, faz com que estas tenham de lidar com o cyberbullying, que começa por ser silencioso. Hoje também temos jovens que não têm limites, que acham normal serem agressivos e respondões com os professores e estes não conseguem manter a autoridade.

 

Comportamentos que começam por ser individuais mas que influenciam o coletivo?

Depois reproduz-se, é quase um contágio. Nos casos em que as famílias respondem positivamente ao apelo da escola, a situação, provavelmente, é resolvida lá. Agora, há comportamentos antissociais se repetem sistematicamente, porque a família não toma as medidas necessárias. Também existe uma desresponsabilização por parte dos pais que acham que as escolas é que têm de resolver tudo e isso não é verdade.

 

Dizia que se verifica uma diminuição no número de agressões sobre as crianças, nas que estas continuam a ser vítimas da exposição da violência entre adultos…

É um problema muito grande, não só aqui em Vizela, mas a nível nacional. A criança que é exposta à violência, começa a aceitá-la como uma coisa normal. Pode vir a praticar a violência ou até a tornar-se numa vítima ao longo da vida. É por isso que os ciclos se repetem de geração em geração.

 

Em que situações é que devem entrar a CPCJ?

Devem entrar sempre que há maus-tratos, sejam eles físicos ou emocionais. Aquela família que está sempre a chamar os filhos de burros, feios, a dizer que não gosta deles, não está a cuidar. Há muitas famílias que acham normal dizer aos filhos que não gostam deles quando fazem uma asneirita. O que querem dizer é que não gostam do que fizeram, mas dizem-no de forma errada. No entanto, a criança vai acreditar que a mãe ou pai não gosta dela, porque não tem capacidade intelectual para interpretar de outra forma. Às vezes, esquecemos que as crianças são crianças. Falar ainda da negligência, daquela mãe que não acompanha, seja a saúde, seja a educação, sejam os cuidados básicos que a criança precisa. A situação de abuso sexual nem se fala… A mendicidade… Todas as situações que possam comprometer o desenvolvimento normal daquela criança devem ser reportadas à CPCJ de Vizela.

 

Como é possível a família conseguir um equilíbrio entre um mundo dominado pelas tecnologias e o bem-estar emocional das suas crianças?

A família é que tem de se adaptar no sentido de dar resposta a essas necessidades. Se sabemos que as tecnologias são um perigo, temos de arranjar estratégias, de acordo com a dinâmica familiar, que vão ao encontro da melhor resposta, porque não conseguimos controlar tudo. Imaginemos um casal em que o pai até domina as ferramentas digitais e a mãe não, fica o pai com a responsabilidade de orientar as medidas de segurança. Se é uma família que não tem literacia, pode ser pedida ajuda à escola para instalar o controlo parental.

 

Podemos falar também no perigo dos consumos, de álcool e de drogas?

Sim, é sempre uma preocupação, principalmente na adolescência. Os números mantêm-se mais ou menos idênticos, embora tenha aumentado nas jovens do sexo feminino, o que preocupa, porque as meninas são muito boas a disfarçar aquilo que fazem. O consumo do álcool é um problema e ele é muito elevado em Portugal, onde o vemos como uma coisa normal e não como algo nocivo.

O controlo é importante, para evitar os comportamentos de risco e, a seguir, a dependência, que é uma coisa que também não se fala muito. E depois temos o mercado bombardeado com substâncias que não sabemos o que são, que os miúdos experimentam porque lhes é dada a oportunidade e a curiosidade faz parte da adolescência.

 

Mas o consumo de algumas destas substâncias pode ter consequências graves?

Sabemos que há jovens que têm surtos psicóticos. Mas não é dessa parte que falam entre eles, mas antes do bem que sentem quando experimentam – “Fiquei assim numa nice durante umas horas”. Isto um perigo para a saúde destes adolescentes, um risco para a saúde mental, com problemas que os vão acompanhar ao longo de toda a vida. Alguns, depois, até com esquizofrenias associadas.  No outro dia, tivemos uma formação no âmbito da Saúde Escolar e percebemos que é tudo muito barato e que os miúdos têm fácil acesso, pois andam sempre com dinheiro.

 

Como podem os pais prevenir situações de risco?

Com uma comunicação muito positiva com os jovens. É essencial haver abertura para comunicar. Isto significa ter uma relação de confiança, não sermos autoritários, nem críticos quando comunicamos, mantendo abertura para que nos possam procurar e dizer: eu experimentei. A partir daí, vou estar sempre numa posição mais favorável para o ajudar. Acharmos que nunca vão experimentar pode ser o nosso erro. Tal como acharmos que os nossos filhos serão diferentes, porque nós dissemos tudo o que havia para dizer em casa. Não é assim. Eles são adolescentes e vão agir como adolescentes. Se tiverem a oportunidade de experimentar, se lhes for oferecido e estiverem em grupo, farão exatamente o mesmo que todos os outros. Agora, temos é que deixar abertura para falar, seja de prevenção de doenças sexuais, da gravidez, quer seja sobre o consumo de álcool ou de droga. Isso significa comunicar diariamente. Eles vão dizer aquilo que querem dizer, mas têm de sentir que o podem fazer.

 

Neste mundo em ebulição, perante uma sociedade inquieta, apressada, qual é o caminho que deve ser feito para conseguirmos algum equilíbrio emocional?

Não é fácil, mas temos de nos obrigar a parar. As crianças precisam de tempo. Não precisam de 10 minutos de qualidade. Precisam de sentir que estamos lá quando precisam.

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