A Capela da Senhora da Tocha

Júlio César Ferreira

2021-08-05


Porque me foi pedido, depois de um programa que há tempos passou no Porto Canal, nada melhor que uma adaptação livre de uma visita feita por Pedro Vitorino (1882-1944) – Joaquim Pedro Vitorino Ribeiro - Médico, historiador, arqueólogo, etnógrafo, militar, e crítico de arte - a este castro pré - romano em Janeiro de 1924.

Arrumado ao sul das Caldas de Vizela, na freguesia de Santo Adrião, fica um castro pré-romano em cujo cimo se vê uma graciosa capelinha conhecida pelo nome da Senhora da Tocha.
Das Caldas a Santo Adrião o caminho a pé faz-se; sem esforço, mesmo com agrado, pela margem do rio, cujo cenário cheio de encanto e pitoresco nos enleva. 
Passado o Vizela, para diante da igreja paroquial ao lado direito, está o castro. Povoam-no humildes casas de colmo que negrejam pela encosta em número avultado. A actividade agrícola local é manifesta.    
A subida ao Castro faz-se com relativa facilidade por um caminho, lançado ao norte, entre frondes, que obliqua pela lombada do monte. A breve trecho surge-nos um alto escadório enviesado, nada menos de vinte e cinco degraus, que enfrenta a ermida; dois degraus mais e eis-nos no limiar.
O edifício está orientado, olhando portanto a sua frontaria a poente. Nesta face rasga-se a porta de ogiva rebaixada com duas caneladuras e três toros cilíndricos, que constituem toda a sua frugal decoração, pois os mesmos silhares do muro lhe formam as ombreiras; a cúspide remata numa sineira cujas proporções desmedidas e estrutura mostram ser uma superfetação. 
Na fábrica, o que prende logo a atenção do arqueólogo é o coroamento ameiado, sem o qual a capela, diminuto interesse lhe despertaria. 
Vale a pena observar com minúcia a fiada dos merlões, em número de trinta e nove, recortados em dois chanfros nas faces, dada a circunstância dos ornamentos que alguns ostentam. Nem todos são decorados, mesmo uma minoria o é, facto que não diminui o seu interesse. Na decoração verificam-se motivos peculiares ao românico, como a cabeça de cordeiro e as esferas, mais de uma vez repetidas. Porém a maior curiosidade da ornamentação está nos merlões dos cunhais do corpo principal, constituída por linhas geométricas que se entrecortam, lembrando certos sinais mágicos, como o signo-samão, muito em voga entre o nosso povo, e numa forma quase esquemática da figura humana que duas vezes se patenteia ao lado da frontaria.
A construção, de médio aparelho irregularmente talhado, é de dimensões reduzidas, medindo o corpo da capela uns seis metros de frente, por pouco mais de doze de fundo, dos quais uns quatro cabem à abside. De primitivo, há a notar ainda a cruz que se eleva na altura do cruzeiro e as pequenas gárgulas que afloram nas paredes da capela-mor.
Internamente o templozinho está vazio na sua parte principal: uma pia de água benta a cada uma das entradas, sendo a da parte da frente de tipo antigo, eis tudo. Paredes nuas ressumando humidade, pavimento grosseiro em parte aproveitado da própria pedra do monte, desbastado, que entremeia com toscas lajes mal unidas, e tecto de madeira, em forma de berço, constituem o recinto.
Um modesto arco triunfal, semelhante no seu talho ogivado ao da porta abre-se na minúscula capela-mor de tecto de masseira onde apenas se vê um banalíssimo altar através dum gradeamento não menos banal. 
Sobreposto ao arco, está um nicho envidraçado. Abriga uma velha imagem da Virgem, em meio corpo, colorida, manto azul e vermelho, com ressaibos escultóricos do período românico. Sustenta na mão esquerda menino, empunhando na direita uma vela. É de calcário. A seu respeito esclarece Martins Sarmento «Deixou o lugar de honra (Senhora da Tocha) mas ocupa ainda um plano secundário com a designação de Santa Capeluda que lhe deram decerto em troca do que perdeu»: foi «destronada pela moda mas não absolutamente desprezada». 
A imagem que se lhe antepôs e está na capela-mor é moderna: é hoje a verdadeira Senhora da Tocha. O onomástico do orago em referência merece ser considerado.
Diz Martins Sarmento: «O castro, mais conhecido pelo nome de monte da Senhora da Tocha, pronunciado não sabemos porquê Senhora Dátocha, reúne todas as condições topográficas duma genuína povoação pré-romana». O modo de pronúncia, que não escapou à arguta observação do arqueólogo vimaranense, sugere outra origem do nome da Senhora. Assim ele não adviria, como parece crível, do facto, de ter a imagem uma vela na mão, (a circunstância da vela (tocha) que a Senhora patenteia é razão mínima, pois outras Senhoras, como a da Luz e das Candeias, a ostentam também. Deve-se recordar que atocha ou tocha, traduz figuradamente entre nós, pedido, imploração. O termo poderia designar, assim, a Senhora a quem se recorre em aflitivos momentos) mas reportar-se-ia a essa, outra imagem que, segundo a tradição, em tempos remotos um apóstolo da Antioquia trouxe à Península e a qual foi erigida nos arrabaldes de Madrid uma ermida em seu louvor, sita nuns terrenos semeados de esparto (atochales), pelo que tomou o nome de N. S. de los Atochales ou de Atocha.   
É Padroeira de Madrid e tem hoje uma magnífica basílica.    
Não será esta a origem verdadeira Senhora que o modo da pronúncia através dos tempos parece justificar? Relacionar-se-á ainda, a denominação de Santa Capeluda com o manto de tipo oriental, espécie de amplo capeliço, da imagem espanhola? Sem as impor perentoriamente, creio não serem, estas razões de todo descabidas.
O outeiro onde a ermida se ergue, «completamente isolado por todos os lados», evidencia restos, por Martins Sarmento estudados, que o caracterizam como um castro anterior ao domínio romano. Daí deriva outro nome pelo qual a mesma Senhora é designada na localidade - Nossa Senhora do Castro. 
A propósito dum clamor que de S. Paio de Vizela se dirigia à capela na terceira sexta-feira de quaresma, tal se vê no Portugal Antigo e Moderno. 
A Senhora da Tocha, que tem a sua festa a 19 de Março, (nesta ocasião era costume iluminar o monte com montões de pinhas a arder) quase caída em desuso, é advogada das parturientes. Sempre que uma mulher da localidade tem o seu bom sucesso, pela voz festiva do bronze, em repiques seguidos, todos nas imediações o ficam sabendo, costume curioso ao presente ainda inalterável. Desejei ouvir o famigerado sino, afinal moderno, sempre a jeito de ser tangido à custa duma escada de mão permanen-temente amarrada à frontaria, cujo som claro e vibrante se espraia por alguns quilómetros em redor. Foi-me satisfeita a vontade. O som alegrou-me e fez-me compreender a satisfação que essa pobre gente terá em o escutar, festejando habitualmente um espírito que brota, em vez de carpir em lúgubre toada urna vida que finda.