Recordando Macau…

Cipriano Alves

2021-03-04


Macau, situado no Sul da China e a 60 km da grande metrópole de Hong Kong, administrado por Portugal durante mais de quatrocentos anos, considerado o primeiro e grande entreposto comercial entre a China, a Europa e o Japão, foi a última colónia europeia na Ásia.
A partir de 20 de Dezembro de 1999 foi devolvido à China ficando com um regime especial administrativo para os cinquenta anos seguintes subordinado aos princípios do Governo Chinês, “um país, dois sistemas”.
Ponto de encontro e intercâmbio multicultural entre o Ocidente e o Oriente, os Macaenses, não os naturais de Macau, mas os de ascendência Portuguesa, miscigenados com as etnias Japonesa, Malaia, Javanesa, Indiana e Filipina, também conhecidos como os “Filhos da Terra”, são uma das mais importantes e duradouras heranças da nossa presença. A vida dos Portugueses na pequena colónia durante centenas de anos deu origem a que uma parte da população nela instalada seja proveniente do seu cruzamento, naturalmente assumido, com mulheres das etnias acima referidas e mais recentemente também com mulheres chinesas.
Sendo a sua população (cerca de 540 mil habitantes) maioritariamente chinesa (94,3%), onde coexistem com portugueses (1,7%) e macaenses (3,4%) de um modo harmonioso, pacífico e saudável, nela, convergem muitos dos valores, crenças religiosas, hábitos, tradições a até estilos arquitectónicos.
Com uma das maiores esperanças de vida no oriente (82,27 anos), um menor índice de mortalidade infantil (4,3 mortos por mil nascimentos) e uma reduzida taxa de desemprego da população activa (2,9%), Macau constitui na actualidade um progressivo e economicamente rico território.
Com um clima quente e muito húmido pela influência das monções no período de Março a Agosto, o território macaense é anualmente açoitado por tufões entre Abril e Setembro. Mas até neste último aspecto Macau é uma terra privilegiada. Era costume eu ouvir dizer que os Portugueses souberam escolher o local para ficar.
De facto, os tufões, grandes ciclones tropicais, que todos os anos se desenvolvem nos mares do sul da China, a sua maioria, ao chegarem às proximidades do Rio das Pérolas, limite avançado da região macaense, guinavam à direita e iam provocar seus maiores estragos na vizinha Hong Kong.
Mesmo assim em dias de aproximação de tufão, toda a população entrava em confinamento com portas e janelas bem aferrolhadas.
Mas alguns não tiveram a atenção antes referida e provocaram grandes danos, mantendo-se na memórias das gentes macaenses.
Um dos mais importantes pelos efeitos nefastos que causou ocorreu em 1738. Marques Pereira registou nas suas “Efemérides”: “5 de Setembro de 1738. Neste dia, e até à manhã seguinte, sofreu esta cidade e o porto de Macau um horroroso tufão, que pela grandeza dos estragos e desastres que dele se contam deve ser considerado talvez o maior que nestas paragens se viu desde que a colónia existe. Houve muitas casas destelhadas e algumas arrasaram de todo… Sem falar das embarcações chinesas, que em número incalculável se desfizeram pelas praias em lenha e cadáveres… Um manuscrito, que tenho à vista e que refere por miúdo estas desgraças diz que depois e por muitos meses teve a gente d’esta cidade repugnância a comer peixe, porque se lhes encontravam no buxo, dedos e pedaços de carne humana”.
Mas voltemos às minhas andanças por estas paragens. Apesar dos anos já passados continuo a rever factos, acontecimentos, costumes e tradições, cujas imagens, qual ferrete, continuam gravadas bem fundo na minha memória. Revejo o vendedor de fritos, que na rua, montado na sua bicicleta ajaezada com um fogão, velho da idade e do uso, era a alegria da pequenada e impregnava de forma inclemente a sua vizinhança com um cheiro horrível a azeite várias vezes utilizado. O que na altura tanto me incomodava, hoje serviria certamente para matar a saudade desse passado.
Revejo os homens e as mulheres que nos jardins e após terem dependurado as gaiolas com os seus pássaros de companhia entre a folhagem das árvores tentando assim mitigar as agruras da sua falta de liberdade, em gestos sincronizados de braços e pernas, lenta e graciosamente faziam a sua ginástica matinal.
Revejo a escola mista infantil do Colégio de Santa Rosa de Lima, que, frente à minha janela, a freira educadora com as crianças serenamente sentadas numa roda perfeita os entretinha fazendo perguntas a que todos respondiam em uníssono ou então ensaiava canções que todos acompanhavam a compasso batendo palmas. E quando, repentinamente, uma se levantava e a correr ia impeticar com outra, era portuguesa com toda a certeza…
Revejo a velha e pequenina chinesa, com um peixe, ainda estrebuchando, dependurado num fio, a dirigir-se para a casa de jogo, onde, num pequeno espaço temporal, derretia o pequeno pecúlio amealhado e depois saía com a maior calma do mundo e um seráfico olhar, como se nada tivesse acontecido.
Revejo tudo isto e muito mais e tudo recordo com saudade.
Mas hoje, gostava de vos falar da Maria, chinesa, baixinha em estatura, mas roliça e abonada de carnes, empregada lá de casa.
Como tinha dificuldade em curvar-se, limpava o pó sentada num minúsculo banco que arrastava pelo chão.
A Maria e o seu marido polícia, tinham por hábito jogar no casino do Hotel Lisboa durante as festas do Ano Novo Chinês, ocasião em que, legalmente, os funcionários  públicos o podiam fazer.
Mas nada disto seria interessante se não houvesse um pequeno pormenor que pretendo contar.
Acontecia que o nosso casal chinês ao consumar o seu costume anual, jogava todo o dinheiro poupado no ano, apostando a sua totalidade, numa única jogada da roleta. Por norma e assim tinha acontecido nos anos que já levavam de casados, o dinheiro desaparecia nesse instante.
Questionados porque jogavam desse modo e não utilizavam as suas poupanças anuais apostando em pequenas parcelas, respondiam que não tinham interesse em fazê-lo, pois mesmo que ganhassem algum dinheiro, o mesmo não chegava para melhorar de forma significativa o dia a dia das suas vidas. Assim, como faziam, se um dia a sorte os bafejasse, tudo seria então diferente. A sua vida seria outra, para muito melhor.
Como nunca aconteceu, o dinheiro desaparecia e a sua vida nunca se alterou. Mas ter fé é sempre bom…