POR TERRAS DO NORTE... (Primeira parte)

Júlio César Ferreira

2023-01-19


João Paulo Freire (Mário)
Lisboa 1926
VIZELA! - Mal pensava eu anteontem na Póvoa que hoje estaria aqui! 
Mas o jornalista põe e o acaso dispõe e quis a velha amizade do ex. senador Sr. Dr. Armindo Faria que eu não deixasse o norte sem visitar esta paradisíaca mansão do Ave e do Avizela que tão linda e tão admiráveis paisagens nos oferece. 
Como sabem, a viagem de Trofa para cima faz-se quase toda à beira-rio num encanto soberbo de paisagem que capricha, logo de entrada, na linda terra do Conde de S. Bento, nessa admirável vila de Santo Tirso, que meus olhos nunca vêm sem alegria e sem espiritual prazer.

Vizela fica numa cova. 

Parecia que por esse facto seria uma terra sem horizontes e sem paisagem. Não é. O rio dá-lhe encantamentos de beleza e as gargantas dos cerros que a contornam abrem-lhes horizontes que nos entremostram, lá longe, o píncaro sagrado do Sameiro.
A sua luxuriante vegetação, as suas hortas cuidadas e alegres, onde as árvores sofrem o estrangulamento das vides de enforcado, ainda carregadas da cachos luzidios, a sua temperatura outoniça, que tem maciezas agradáveis de veludo, a paz e a tranquilidade do seu Parque, que o êxodo das gentes de fora deixou já no remanso e na tranquilidade dos indígenas, dão-nos horas de inesquecível prazer que nos vai confortando o espirito derreado pela asfixia das super civilisações das cidades.
A época termal foi este ano mais concorrida do que no ano anterior.
Por toda a parte é esta a nota que mais tem saltado à minha observação de jornalista. 
Imensa gente, portuguesa e espanhola, encheu de Julho a Setembro, as nossas praias e as nossas termas, a ponto de não haver um único lugar vago, uma única casa que não tivesse mais hóspedes que a sua lotação comportava!

Vizela não escapou à regra geral e as suas esplendidas termas e os seus hotéis tiveram este ano uma concorrência que excedeu, em muito, a dos anos anteriores.

Não lhes dou novidade alguma se lhes disser que em Vizela se joga.
Joga-se em Vizela como se joga em Espinho, como se joga em Matosinhos e na Póvoa e na Foz e em toda a parte.
E joga-se forte e joga-se à valentona. 
Está certo. O jogo é a alma das praias e das termas e tentar proibi-lo, é, além dum disparate que só ilude os tolos, um prejuízo que a ninguém aproveita, nem mesmo aos jogadores. 
Mas o que não está certo é que se jogue sem proveito material para o Estado e sem aquela regulamentação e fiscalização que o jogo requer. Vi hoje nas salas de jogo dum café daqui alguns menores, rapazitos de dez a doze anos, viciandose, pervertendo-se, miasmatisando–se (1) no contacto doentio do vício! Não há o direito de consentir semelhante infâmia moral, e isso não seria possível se o jogo fosse regulamentado e uma fiscalização rigorosa sobre ele se exercesse.
Há ainda na região de Vizela o aspecto agrícola e o aspecto vinícola. 
As colheitas foram óptimas, mais avultadas que as do ano anterior. A faina das vindimas vai agora no seu auge e os homens lá andam fazendo prodígios nas escadas altas, cortando os cachos suspensos das árvores e das ramadas.
O tempo vai esplendido, maravilhoso, lindíssimo, duma suavidade e dum encanto que não há aí dias de verão quente e sufocante que lhe valham, numa ligeira comparação favorável.
Só as nossas estradas para aqui estão abominavelmente estragadas, cheias de covas, impossível de por elas se transitar. Mais um inverno rigoroso, continuado, e não haverá meio de se viajar no norte de Portugal senão de aeroplano!
A casa do Dr. Armindo de Faria fica para cá da ponte, no bairro mourisco, e é um encanto. Todo o bairro é da família. Quase uma vila inteira! E há aqui, nesta casa, que é um paraíso de gosto e de frescura, um vinho verde, que até S. Francisco de Assis cometeria o pecado de o beber, se para tal tivesse necessidade disso!...
Ah! as maravilhas sempre crescentes deste Minho fariam, só por si, a riqueza de Portugal, se Lisboa, essa Lisboa zaragateira e política, lhe não estragasse e lhe não inutilizasse por completo as suas justas pretensões de província turística por excelência.
A vida aqui, regularizada a questão da luz eléctrica, que é ainda por doses homeopáticas, transformado e modernizado o seu edifício termal, fazendo desaparecer os barracões de algibebes que o encobrem, concertadas as suas vias de comunicação e alargada a sua rede ferroviária, tornar-se-ia uma das mais intensas da região minhota, e daria ao Estado, na regulamentação do jogo, uma receita de centenares de contos.
O que eu, porém, lhe garanto é que, no mês de Outubro, as termas de Vizela têm uma tal suavidade de temperatura que eu chego a não compreender como os aquistas não preferem este mês aos meses quentes e insuportáveis de Julho e Agosto.
Garanto-lhes, sem lisonja, que Vizela me encantou agora muito mais do que da outra vez que aqui estive, em pleno verão, e que a frescura das suas tardes, a amenidade das suas noites e a beleza graciosíssima do seu rio me prenderiam aqui o mês inteiro, se amanhã, a obrigação de ir mais além, me não forçasse a abandonar Vizela. (…)
João Paulo da Silva Veneno Freire, que escreveu com o pseudónimo “Mário”, nasceu na Murgeira (pequena aldeia situada a cerca de três quilómetros de Mafra, na Estrada Nacional número 9), em 14 de Setembro de 1885. Por causa da influência familiar, principalmente por parte dos pais, João Paulo ingressou na vida eclesiástica indo estudar para o Seminário Patriarcal de Santarém onde, devido à sua aguda inteligência, acabou por se tornar num excelente aluno. No entanto, e com o passar do tempo, acabou por notar que não tinha qualquer tipo de vocação para a vida de igreja e decidiu ingressar no exército, frequentando a Escola Prática de Infantaria em Mafra, tirando o curso de sargentos. Acaba por também abandonar a vida militar em 1904 e dedicar-se inteiramente às letras que era, no fundo, o seu grande sonho e anseio. A partir daí iniciou a sua carreira jornalística a qual exerceu até à sua morte. Em 1908 escreve Recordações para a velhice, o seu primeiro livro de versos e a sua estreia como escritor. Entre 1908 e 1909 organizou e dirigiu os jornais “Campo de Ourique” e “O Distrito de Beja”. Foi redactor e chefe da redacção do “Diário Ilustrado” passando depois para “A Capital” que acabou por ser, para ele, uma grande escola de jornalismo. 
Para melhor conhecer o Norte e sendo colaborador diário no Jornal de Notícias, viaja por terras do Minho e publica, em 1926, o seu “Por terras do Norte”, do qual, hoje, me atrevo a trazer a primeira parte da sua visita e permanência em Vizela.

(1) Má influência