No dia seguinte ninguém morreu

João Madureira

2021-11-25


Hoje desafio-vos para me acompanharem numa pequena reflexão sobre algo profundamente desconcertante, não apenas para mim, mas para todos nós. O dia nasce em Vizela. Para a esmagadora maioria de nós será apenas mais um dia. Em pleno outono, o céu é limpo e azulado, as folhas das árvores caídas formam paletes de cores no chão numa espécie de degradé do verde ao castanho, deixando a paisagem aconchegante, até. E fria. Bem fria.
 
O sino toca, alguém morreu! Quem terá sido? Assim que saímos de casa procuramos o papel afixado nas montras das lojas, pesquisamos online alguma informação e quase que inevitavelmente no caminho de casa para o trabalho, há sempre um passante que em surdina lá nos diz que “A” ou “B” morreu. E seja quem for a pessoa que finou, raramente ficamos indiferentes. O impacto que cada notícia deste tipo tem em nós mede-se desde logo pelo grau de familiaridade que tínhamos com a pessoa ou com a sua família mais próxima e depois claro, quanto mais nova a pessoa for, maior é a “chapada” que recebemos. No caso de ser uma pessoa quase desconhecida ou alguém fora do círculo da nossa vida há muitos anos, quando se trata de alguém da nossa geração, o nosso pensamento vai de imediato à procura daquela pessoa na estante das memórias boas que guardamos da infância e adolescência…e quase sempre encontra uma ou outra memória que de alegre se faz imediatamente triste.
A minha geração, aquela que vai já na segunda parte do caminho entre os 30 e os 40 anos, tem sido apanhada de surpresa cada vez mais vezes por ser confrontada com a imprevisibilidade da vida e da morte, com a crueldade e a frieza da vida no seu esplendor. E de onde vem o choque? O que nos faz sentir tristes? A morte de alguém.
De repente, como numa daquelas cenas de um filme em que pára tudo à nossa volta, ficamos apenas com os nossos pensamentos e damos por nós a pensar no seguinte: Ainda “ontem” estávamos a jogar ao esconde-esconde, ao “vai mosca”, a passar as tardes de sábado no Guimarães Shopping onde íamos comer um HappyMeal antes de apanharmos o autocarro da Transcovizela e pedir meio bilhete de volta ao nosso pequeno mundo. Hoje damos por nós a procurar muito delicadamente todos os eufemismos possíveis que possam trazer o mínimo conforto à família destroçada de alguém que conosco viveu as primeiras diabruras, aventuras e aprendizagens. Apesar de por vezes não haver qualquer vínculo, é impossível não sermos atingidos por uma angústia e uma tristeza muito difícil de explicar e até de definir. Voltou-me a acontecer isso na semana passada e já me tinha acontecido em semanas anteriores. E a razão é sempre a mesma: o desaparecimento de alguém que embora não pertença ao grupo mais privado de pessoas com quem me dou, fez parte da minha vida. E isso não se pode apagar.

Cada vez que somos surpreendidos por notícias deste tipo, as primeiras palavras de conforto são ditas para com os nossos botões e por momentos, quase tudo passa a ser secundário. Aquele dito problema que nos tem tirado o sono durante a noite, o emprego mal pago, a instabilidade de uma qualquer relação, o resultado pobre do nosso clube, de repente, tudo isso passa a ser uma insignificante preocupação, embora tenha a noção de que cada pessoa vive cada problema à sua maneira e não há uma tabela onde se classificam os “problemas”. O que há, e disso não há qualquer dúvida, é a certeza de que um dia chocaremos alguém quando passarmos para o outro lado, isso sim. A morte é a maior e se quisermos ser sinceros, a mais certa de todas as nossas certezas. Aproveito este espaço para o dizer, com toda a ousadia que me permitem: Todos vamos morrer.

Aqueles leitores mais familiarizados com a obra de José Saramago identificaram de imediato o título desta minha crónica. Foi com essa exata frase que Saramago começou (e terminou também) a obra “As intermitências de Morte”. No fim dessa leitura questionei-me como só li tal obra em 2021 mas a verdade é que, leitor pouco assíduo me confesso. Incrível o poder da literatura. Foi preciso um livro fantasioso do nosso Nobel para me aperceber realmente como seria pouco interessante viver num mundo onde a morte decidisse deixar de matar.

Da forma como crescemos, como somos educados, como vivemos, é difícil falar abertamente sobre um assunto “pesado” como o da morte e é por isso com naturalidade que a maior parte de nós não está, nem estará nunca, preparado para tal acontecimento e nos magoa tanto sempre que se aproxima do nosso círculo familiar e daquele grupo de pessoas que nos acompanham nesta jornada. Temos um medo de morte da própria morte. Já a morte, essa não tem medo de ninguém.*

* Mais do que deixar-vos a pensar na morte, pensem na vida e no quanto a vida é linda, apesar de todas as contrariedades que vão surgindo. Gostaria também de vos deixar um pouco mais curiosos para ler, ou reler, a obra que referi acima. (Está disponível para requisição na Fundação Jorge Antunes e olhem que já cheira a Natal, também!)