Não é só a música que arrepia

Carina Flor

2023-03-16


Soube-o no passado dia oito do mês presente, no concurso municipal, que a leitura também arrepia. A leitura e o leitor, quando nos mostram, através da expressão e do tom, mundos que se estendem para além das páginas de um livro. Eu explico. 
O Concurso Municipal de Leitura, realizado no Auditório Francisco Ferreira, na nossa cidade, mostrou-me que o mesmo livro, a mesma estória e, até, o mesmo excerto podem levar-nos a viajar por lugares completamente distintos. Naquele dia, foi impossível ficar indiferente à força e determinação daquelas crianças e jovens leitores no momento em que subiram ao palco e, munidos de apenas um livro, me fizeram arrepiar com a musicalidade, a expressividade e a verdade que traziam. Foi um esquecer imediato da minha posição no papel de júri e um esquecer concomitante das próprias estórias. Trouxe para casa somente a memória de rostos, de vozes e de mundos. 
Cada leitor, no seu propósito de corresponder à técnica criteriosa do que se considera “ler corretamente”, foi capaz de transcender todos os indicadores da avaliação com a verdade que trouxeram para o palco. O mesmo livro, a mesma estória, transmutou-se e transmutou o mundo dos que ali estavam no papel de ouvintes. (Talvez me tenha arrepiado um pouco mais do que os demais, pois tenho tendência a intensificar a minhas emoções.) Numa atmosfera de expetativas, a tarde foi palco de muitas personalidades, de muitas casas, de muitas identidades. 
Cada concorrente foi um mundo dado a conhecer: o menino que desmontou a formalidade com a sua espontaneidade, a menina que entoou o drama com palavras rasgadas pelos lábios trémulos, o jovem que conteve o seu caráter rebelde e ponderou a pontuação, a jovem que agarrou o livro com a mesma firmeza com que sorriu e o rapaz que lia como quem nos pergunta sobre nós. 
Mas, foi na prova de improviso que, apesar de considerados, todos os critérios deixaram de fazer sentido para justificar a emoção sentida ao escutar estórias que vinham do impulso, da forma como aqueles concorrentes veem, sentem e percebem o mundo atual. Mais emocionante do que escutar enredos bem encadeados e criativos, foi escutar os temas que cada um levou para o palco. 
Ali, todos puderam conhecer um pouco do mundo aos olhos da nova geração. Um leitor, uma voz, um tom, uma expressão, uma preocupação e um olhar atento aos problemas sociais.
Numa era em que impera a alienação e a indiferença ao serviço da desumanidade, dei por mim arrepiada, do início ao fim, com crianças e jovens conscientes que expressaram as suas próprias emoções perante o “aqui” e o “agora”. Não indiferentes ao estado atual do mundo, num improviso, os concorrentes passaram mensagens que disseram muito mais acerca deles do que, propriamente, acerca das estórias criadas. 
Estou certa de que a leitura, o caminhar pelas páginas de um livro e o mergulho nas estórias escritas são uma janela para o mundo exterior. Mas, a criação, a expressão verdadeira e o drama da voz, que fala muito mais do que conta, são uma janela para dentro. Para aquele lugar onde só o arrepio pontua a estória e a história do nosso mundo interior.