Entre dois amores (Conclusão)

Júlio César Ferreira

2022-01-13


Aos primeiros alvores da madrugada, arrumado o bastão de pastor, lá ia o pobre do João, sacola a tiracolo, onde levava o pão negro de centeio, a escalar os montes em procura de pastagens viçosas para o seu gado. Do cume dos montes extasiava-se perante a natureza…
Ensimesmava nos seus mil problemas sem lhes encontrar solução.
Quedava–se abstrato, perante o silêncio que o rodeava.
E como lhe falava à alma este silêncio dos montes! Este silêncio que nos transporta a um mundo desconhecido, este silêncio que ensina a amar a natureza e que é apenas interrompido brandamente pelo aboiar dos camponeses nas vessadas, pelo chilrear das andorinhas e cotovias no espaço livre!
Este silêncio, longinquamente quebrado pelo rir cristalino de uma fonte que brota da rocha, dos cantos melodiosos e inesquecíveis das ceifeiras ou do toque tristonho do Ângelus ao tombar dum dia outonal severamente calmo.
Este silêncio que é de longe a longe cortado pela rela monótona e cantante das noras a regar as leiras fecundas de cultivo, do ralhar das pegas, gaios e petos nas altas ramarias dos pinhais ou do arrulhar amoroso das rolas a construírem o ninho numa tarde soalheira e poeirenta.
Que encantadora harmonia de cores e sons.
Do alto do outeiro, sentado sobre o capitel mutilado duma coluna românica, João contemplava enlevado os contornos do vale, a casa onde nasceu, o solar dos Priscos onde, no regresso, levava a cabrinha da fidalga que trazia a pastar sempre com as suas. Dali avistava os povoados, o rio onde moinhos cobertos de hera e alvos do pó da farinha, levantavam toalhas de espuma nos meandros dos açudes caprichosamente enfeitados de vegetação.
Dali via os casais rodeados de medas altas e esguias de palha centeia, os cerejais carregados de rubros frutos, as jarras cheiinhas de roxos cachos, outras capelinhas distantes e alvinitentes nos cimos dos outeiros, perdendo – se de vista na nebulosidade azulina do entardecer!...
Ao cair da noite, João regressava ao seu pobríssimo lar por caminhos velhos e irregulares, de pisos cheiinhos de lama, da última chuva miudinha e de excrementos pútridos de animais rústicos, cantarolando uma melodiosa canção. Atrás, quase junto dele, uma ovelhinha muito fraca que era todo o seu enlevo, todo o seu tesoiro.
Nesse dia, ao aproximar–se de casa estranhou não ver o fumo sair da rustica chaminé, sair dos inúmeros buracos da cabana como de um enorme incensório.
A hora era da mãe preparar as saborosas berças…
O coração dera–lhe um baque, a alma apercebia–se da desgraça…
A luz morta e sombras profundas envolviam a terra. O ruído dos seus pés na folhagem morta e já em decomposição lenta, amargura de vidas que tombam desemparadas no incomensurável labor da natureza, irritava–o.
Aligeirou o passo. Ao chegar à porta do casebre parou. Uma força desconhecida petrificava–o.
O silêncio interior martirizava–o. Por fim, vencendo a timidez, pálido de emoção empurrou a escanzelada porta.
A quadra era morna, bafienta e escura. As paredes estavam enegrecidas e húmidas, o solo irregular e lodoso.
Na esquerda estava um lar primitivo, a maceira, o forno e uma mesa de pinho tosca. Ao redor do lar descansavam dois machos e um ensebado preguiceiro.
Em frente demorava uma arca carunchosa onde se guardava o bragal de linho e os trajos domingueiros.
Na direita, um catre de bancos com uma enxerga de palha, duas mantas de trapos e um lençol de estopa.
Sobre o catre, na parede negra e irregular, uma oleogravura antiga; defumada, suspensa da trave por ferrugento arame, uma candeia de azeite.
No catre jazia a mãe, a sua querida e santa mãe, pálida, oleosa da febre, lábios roxos, gretados e delirava…
Sobre a arca, envelhecido e com a dor estampada no rosto, a cabeça entre as, repousava o seu bom pai.
Ela ardia em febre da peste…

Decorreram lentas e tristes, três semanas.
O tio José Manco encanecera.
Deixara de trabalhar e já vendera tudo o que tinha de valor. Do pequeno rebanho restava só a Branquinha, a ovelha fiel, que era todo o enlevo do pequeno João. A lareira já há muito que se não acendia. Por caridade, as vizinhas mais próximas traziam todos os dias algumas tigelas de caldo e tratavam da doente.
Ao canto da casa, no sítio mais escuro, João magro, pálido, olhos esbugalhados pelo terror, via este quadro tétrico, não dormia e não falava. Nesse dia o pai, com os olhos vermelhos de chorar, chamara ao quinteiro o filho, abraçara–o e dissera–lhe com a voz a tremer:
- João, meu querido filho, ouves, é preciso salvar a mãe! É preciso vender a Branquinha! E quedara-se, cabisbaixo.
João ficara petrificado. Deixara sair o pai e caíra de joelhos, mãos erguidas ao céu, a chorar.
Levavam–lhe o seu encanto…mas era preciso; primeiro a sua querida mãe!...
Céu opaco, plúmbeo. Nuvens acasteladas e monstruosas galgam ameaçador o espaço e todo o vale estremece ao ribombar dos trovões. Sonoras e lentas soaram as trindades. Na porta do casebre surge o velho cura acompanhado de dois homens.
Acendem–se velas de cera pura; reza– se o ofício dos defuntos. O José Manco foge alucinado, descalço com a emaranhada cabeleira empastada de suor solta ao vento. Corre sem destino, tropeçando nos muros velhos, troncos caídos pelo chão. João, olhos brilhantes secos de lágrimas, roxo de emoção, caminha direito ao leito mortuário. Ajoelha, agarra – se à mão gelada e inerte da sua mãe, beijando – a freneticamente. Assim ficou pela noite dentro a soluçar, com os lábios colados à mão esquelética e fria da sua Santa Mãe. Cá fora, o temporal amainava. Compassadas e tristes soaram no sino grande do campanário da velha igreja, as dez horas da noite.
A velha porta do casebre rangera lentamente nos enferrujados gonzos.
João ficara indiferente.
No limiar surgira a bondosa fidalga de Priscos e, um pouco atrás com um enorme lampião, uma velha criada com a Branquinha segura por uma cordita.
A fidalga ajoelhara na terra negra e húmida da cabana e orou por momentos. De seguida pegou na ovelhinha branca, muito branca e mansa e aproximou–a do pequeno João.
O pobre animal chegou–se ao pequeno e num afago carinhoso lambeu–lhe as faces.
João soltou um longo gemido… Agarrou a ovelhinha pelo pescoço, juntou – a ao coração, beijou com mais carinho e com mais lagrimas aquela mão que jamais o acariciaria e tombou no solo sem sentidos. A dor e a alegria confundiram–se. João ficava entre dois amores: Um que partia eternamente, outro que lhe restituíam na hora da sua maior amargura.