A “meritocracia” é uma porra!

Carina Flor

2023-09-21


José é o mais novo de três irmãos, Paulo é o mais velho e Pedro o do meio. Os três jovens irmãos moravam, com pai e mãe, numa pequena moradia situada num meio rural, pacato e com pouco movimento. Com o crescimento dos jovens e a necessidade de encontrar trabalho para os três, esta família decidiu mudar-se para o centro da cidade, onde planeavam restaurar uma casa que o pai havia herdado. Em poucos dias, esta família estava instalada na cidade, albergada numa casa velha, suja e sem recheio. Havia muito para fazer naquele que viria a ser o novo lar dos três jovens. O pai não demorou mais do que alguns minutos para definir as tarefas a levar a cabo por cada filho, para que, em pouco tempo, tivessem um espaço limpo e restaurado para habitar. 
Sem qualquer possibilidade de questionamento, os três irmãos teriam três dias de trabalho intensivo e o líder familiar deu a conhecer as tarefas de cada um:
“Meus filhos, escutem bem e com muita atenção. No primeiro dia, o José, que é o mais responsável, ficará incumbido de retirar todo o lixo da casa. O Paulo, como é o mais velho, no final do dia, irá verificar se ainda há lixo esquecido. O Pedro, por ser o mais comunicativo, irá solicitar à câmara o serviço de transporte do lixo para os ecopontos. No segundo dia, o José, que é o mais talentoso, irá pintar tetos e paredes. O Paulo, o mais velho, irá decidir as cores e preparar as respetivas tintas. O Pedro, o mais comunicativo, irá encomendar os móveis novos e negociar os melhores preços. No terceiro dia, o José, que é o mais trabalhador, irá arrumar todos os móveis dentro da casa. O Paulo, o mais velho, definirá onde colocar os móveis. O Pedro, o mais comunicativo, irá convidar os vizinhos mais chegados para um lanche de convívio, a ser confecionado por José, que é o melhor cozinheiro. Esse lanche terá lugar, no final do terceiro dia, aqui em casa. No quarto dia, de manhã, terão que se levantar bem cedo para procurarem o vosso primeiro emprego.”
Todas as tarefas foram concluídas com sucesso e, ao fim de três dias, a casa herdada era já o palco de um convívio com a vizinhança mais próxima. Era quase meia noite quando José, o mais asseado, terminou de arrumar a sala e se foi deitar. No dia seguinte, Paulo e Pedro saíram bem cedo para procurarem o primeiro emprego. Todavia, José, completamente exausto e febril por ter separado o lixo debaixo de uma chuva torrencial, não foi capaz sequer de acordar. 
No final do quarto dia, o pai chamou os três filhos à sala grande e elogiou Paulo e Pedro por terem regressado com contratos de trabalho formalizados. A José, o pai ofereceu apenas um olhar de desapontamento e rematou a mudez com um encolher dos ombros, arruinando todo o mérito do filho.
Meritocracia vem do latim “mereo”, que significa ser digno, ser merecedor e “kratos”, que significa poder e força. Quando se fala de meritocracia, fala-se do alcance do poder através do mérito. E é por causa de desfechos como este que a meritocracia é uma porra! 
A história fictícia de José representa todos aqueles que continuam a ser explorados e espremidos até ao limiar das suas forças nos seus locais de trabalho. Aqueles que, por mérito, merecem ter mais tarefas e mais responsabilidades que os desgastam diariamente. Aqueles que, por exaustão, são obrigados a falhar e que, por consequência, caem diante de cobranças e dedos apontados sem qualquer reconhecimento verdadeiro.
A meritocracia é uma porra e vai continuar a mandar para o charco todos os “Josés” deste país, enquanto permitirmos que os “Paulos” e os “Pedros”, ao serem poupados, continuem a receber os louros pelas funções que nunca serão capazes de desempenhar.