
A Guerra
Maria do Resgate Salta
2023-11-16Já fez 48 anos que deixei a minha Terra-mãe. África, Angola, Luanda. Vim para Portugal. Lisboa. Eu e meu pai, pois a minha mãe e irmãos já cá se encontravam. Fiquei, por opção. Queria acabar o 1º ano de Medicina. Também queria lá estar, mesmo com a guerra civil que já se tinha instalado. Custava-me deixar a terra que me viu crescer e que me moldou como pessoa. A terra onde as minhas raízes cresceram. Vir para Portugal significava separar-me delas. Foi dolorosa a separação. Esse meu amor a Angola, a África foi mais forte que qualquer medo. Medo da guerra à porta de casa, medo das carências, medo de tanta incerteza no dia a dia. Já o disse uma vez que posso sentir medo (quem não o sente?) mas que não me assusto com ele. Não me deixo intimidar ou toldar pelo medo. Usando um termo popular: não fico "acagaçada".
Os últimos meses que lá passei foram difíceis. Assistir a uma guerra entre pessoas que só queriam o poder. Uma guerra que matou e estropiou milhares de outras pessoas inocentes.
A morgue era ao lado da Faculdade de Medicina, assim como o Hospital Maria Pia. Diariamente via as carrinhas a chegar com mortos e feridos graves. Os mortos eram atirados, como se fossem sacos de batatas, para o lado da morgue. Os feridos retirados, sem cuidado, para a entrada da urgência. Ali podia ter ficado "acagaçada" ou traumatizada.
Mas não fiquei. E transformei o "medo" em ajuda. Eu e os meus colegas resistentes fomos para o Hospital ajudar.
O meu pai também não se deixou "acagaçar" e cedeu à minha vontade de ficar mais tempo. Ele que sempre idealizou uma Angola independente e de paz. Uma Angola onde o racismo fosse banido. Ele que, na sua profissão (advogado) sempre ajudou os mais necessitados, os oprimidos e até os acusados pela PIDE (apesar de sofrer represálias não deixou de ser advogado de defesa dos acusados pela PIDE). Meu pai tinha esperança na mudança. O que não se verificou. A guerra tinha chegado para ficar por muitos anos.
Como o Hospital Universitário (na Avenida Brasil) tinha sido bombardeado, os professores não iam lá. Alguns já tinham vindo para Portugal. A minha caderneta com as notas estava na secretaria do Hospital Universitário.
Fui várias vezes à Direcção da Faculdade (que ficava junto à Marginal de Luanda) para saber das minhas notas para poder fazer a transferência para a Faculdade de Medicina de Lisboa e a resposta era a mesma: não temos as cadernetas assinadas pelos professores.
Perguntei se poderia ir buscar a minha caderneta e procurar os Professores para a assinarem.
A funcionária disse que sim.
No dia seguinte fui ao Hospital Universitário. Fui na minha mota. No início da Avenida Brasil já ouvia as rajadas de metralhadora e sons de morteiros.
Na velocidade máxima e quase deitada em cima do volante rompi pela avenida até chegar ao Hospital.
Trouxe a caderneta e voltei para casa como fui: velocidade máxima e deitada em cima do volante.
Já em casa telefonei aos professores e combinei ir, à noite, a casa de cada um.
Estava decretado o recolher obrigatório. Mesmo assim saí de casa na minha mota. Sem luzes, devagarinho e com cautela. Não queria estragar tudo sendo apanhada. Se fosse iria presa e depois... depois era uma grande incógnita. E eu queria ser médica. Era o meu sonho, era e é a minha vida.
Quando via, ao longe, uma brigada de soldados, desligava a mota e a pé (empurrando-a) seguia para outra rua. Consegui as assinaturas.
No dia seguinte fui à Direcção da faculdade e trouxe comigo o processo da transferência para a Faculdade de Medicina de Lisboa.
Fez 48 anos que deixei a Angola. A minha terra-Mãe.
Deixei o mar de Luanda onde me atrevia a entrar mesmo com as suas ondas altas e bravas, as calemas. Deixei as suas tempestades tropicais com chuva forte e relâmpagos que iluminavam a noite.
Deixei muitas pessoas, colegas do liceu e da faculdade. Afastada de amigos e vizinhos. Pessoas. Não raças nem credos. Pessoas todas elas importantes na minha vida.
Deixei a terra onde adquiri força para viver as adversidades que seguidamente tive que enfrentar.
A vida deu muitas voltas.
Mas ainda sou a jovem que deixou Angola. Sou uma pessoa mais experiente. Sou médica como sempre o quis ser. E sou grata. Mesmo pelos maus momentos. Pois esses momentos tornaram-me mais forte. E a compreender melhor quem os passa. Porque valorizo muito os bons momentos. E assim poder ajudar. Retribuindo o bom que a vida me deu.