Em Vizela há 671 pessoas que não sabem ler nem escrever
Os Censos 2021 mostram que em Vizela há 671 pessoas analfabetas, destas 458 são mulheres e 213 são homens. Os números partilhados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) referem-se aos indivíduos com 10 ou mais anos que não sabem ler nem escrever.
Antónia Soares é um destes exemplos. É de S. Miguel e o peso da idade reflete-se no cansaço que vai sentindo, logo nos diz mal nos sentámos para uma conversa. Antónia Soares não foi à escola. “Não sei ler, nem falar [direito], os meus pais não me puseram na escola”, diz, resignada, para logo depois acrescentar: “Eu só aprendi as horas depois de ir para a fábrica. Antes, regulava-me pelas automotoras, tinha de ir levar de comer à minha mãezinha e aos meus dois irmãos a Covas, e regulava-me pela automotora para fazer a sopinha”. A vida era assim. Apenas um dos irmãos de Antónia foi matriculado, morava com a avó que o inscreveu na escola. “Mas ele fugia, não queria ir, diziam à minha avó que o viam a brincar e ela ia com uma “fustiguinha” debaixo do avental, e quando ele a via fugia e vinha ter a casa”, recorda. Uma irmã chegou a fazer a 2ª classe, “mas já andava na fábrica”, refere.
“Fez-me muita falta não saber ler” (Antónia Soares)
A autoridade do pai não se questionava e Antónia nunca lhe perguntou porque não a deixava estudar. “Olhe, eu quando queria ir para a escola o meu falecido pai nunca deixou, dizia: vai andar agora uma rapariga sozinha até que horas da noite, eu não a vou buscar”. “E não fui”. “Quando ele faleceu a minha mãezinha disse: Tónia, se quiseres ir agora para a escola podes ir, que eu deixo, e eu respondi: olhe, quando eu tinha vontade de ir não fui, agora não vou, e não fui para a escola”. “Ainda conheço uns números, sei as horas, mas só conheço alguns, não conheço todos”. E o seu nome sabe escrever? Perguntámos. “Eu não sei fazer nada, fez-me muita falta não saber ler e com este dinheiro novo ainda pior, conheço as notas de 50, de 5, de 10, de 20 euros, mas se for fazer uma conta não sei”. “Que tristeza a gente não saber contar o dinheiro”, diz Antónia.
“Tenho sete irmãos, mas alguns já faleceram, só os dois mais novos é que foram para a escola” (Fernando Morais)
Também Fernando Morais não entrou numa sala de aula. “Nunca fui à escola, porque quando eu nasci nem escola havia”, diz-nos do alto dos seus 86 anos de idade. É de Tagilde. Anos depois, em S. Paio, lá havia escola, mas conta, “já estava fora da idade de aprender, portanto não sei ler nem escrever”.
“Dei a saber às minhas filhas todas, mas eu nunca me dispus a aprender”. “Tenho sete irmãos, mas alguns já faleceram, só os dois mais novos é que foram para a escola”, ressalta.
A vida de Fernando Morais centrou-se no trabalho, na agricultura. Esteve emigrado em França, período que serviu para “ajeitar” a sua vida. Triste por não saber ler? “Muito, mas a minha memória nunca deu para aprender”, responde Fernando Morais, destacando o papel das filhas que lhe ensinaram a escrever o seu próprio nome.
“A minha mãe dizia que as meninas não precisavam de aprender” (Maria da Silva)
Maria da Silva – Miquinhas, como carinhosamente é tratada – completa em abril 90 anos. É natural de Felgueiras, mas aos 15 anos mudou-se para Moreira de Cónegos, para trabalhar como empregada doméstica. E por aqui ficou, agora a residir numa estrutura residencial para pessoas idosas. “Trabalhei como empregada doméstica e na fábrica têxtil, não andei na escola, a minha mãe dizia que as meninas não precisavam de aprender, era só os rapazes, porque eu tenho dois irmãos, e esses dois irmãos fizeram a 4ª classe, tinham de ir para a tropa, as meninas não saiam de casa, não precisavam”. E era assim. A escola não era obrigatória, as famílias, por razões financeiras colocavam cedo as suas crianças a trabalhar e, mesmo as razões culturais eram mais castradoras para as mulheres. “Quando via a professora, ela tinha de passar na minha casa para ir para a escola, ia logo atrás dela, depois levava uma chicotada nas pernas, pois a professora abria a porta e eu entrava logo, a minha mãe ia-me buscar e batia-me”. Como afirma Miquinhas, “as meninas só precisavam saber fazer de comer, arrumar a casa”. “Eu dizia: minha mãe eu quero ir para a escola e ela respondia: tu não precisas de ir minha fila, vão os teus irmãos que vão precisar. Assim cresci”. “Ficava triste, mas não havia outro remédio”.
Por volta dos 80 anos, aventurou-se e frequentou o Curso de Alfabetização que o Rotary Club de Vizela abriu. “Eu não sabia pegar no lápis, não sabia pegar na caneta, não sabia fazer as letras, a professora Armanda escrevia e punha-me a escrever por cima das letras dela, e fui aprendendo, fazia umas cópias, ia ao quadro, mas sou um bocado ruim da cabeça, brincávamos muito, fazíamos almoços”. “Foi uma vida bonita”, recorda.
“Gostava da escola, mas tinha de ir trabalhar” (Maria José Couto)
Quem também frequentou o Curso de Alfabetização foi Maria José Couto. Em criança fez a 3ª classe em Paços de Ferreira, de onde é natural, e depois foi trabalhar aos 11 anos. Ela, criança, foi tomar conta de duas crianças para uma vizinha, depois saiu e foi para a “lavoura, a roçar mato”, refere. Eram cinco irmãos, todos “andaram na escola, mas pouco aprenderam”. “Eu fiz a terceira, a do meio não fez porque não gostava da escola, era preciso a minha mãe levá-la à escola e dar-lhe com a cabeça na parede para ela ficar”. Outros tempos. Maria José Couto conta que até “gostava da escola, mas tinha de ir trabalhar e deixei a escola”. “Depois fiz a quarta classe, mas já estava aqui”. “Antes de ir para a escola tinha de fazer de comer para os meus pais e depois é que ia para a escola”.
Aos 14 anos foi trabalhar para o Porto, como empregada doméstica, aos 28 anos regressou a Paços de Ferreira e dois anos depois mudou-se para Vizela. Aqui também foi como doméstica que ganhou a vida, mas também trabalhou numa lavandaria. “Tinha dois e três trabalhos, ainda fazia rissóis, bolinhos, para criar dois filhos sozinha”, diz.
“Há contas que ainda hoje não sou capaz, a tabuada já não me lembro muito bem”. “Para as coisas do dia a dia desenrasco-me, mas se tivesse a oportunidade naquele tempo para estudar, estudava, mas tinha de ganhar para casa e mesmo quando fui para o Porto tinha de mandar o dinheiro para casa”, lembra.
“Escrevo o meu nome ao menos” (Elvira Moreira)
Já Elvira Moreira, de 82 anos, é de Lustosa. Frequentou a escola até aos 14 anos, até que teve de sair. “Não aprendia bem, sei ler alguma coisa, escrevo mal, escrevo o meu nome ao menos”, diz, acrescentando que começou a trabalhar cedo: “Andava nos porcos, nas feiras, com o meu pai a vender”. “Era um trabalho duro, ia a pé para Paredes, a carroça com sete e oito porcos, às três horas da madrugada já ia atrás da carroça, eu a dormir a bem dizer e a carroça é que me arrastava”, recorda. E não havia grande tempo para se dedicar aos livros, pois desde os sete/oito anos que começou a ajudar o seu pai.
“Dizia: não te importas de escrever tu, é que eu tenho uma letra muito feia, mas não era nada, era porque eu não sabia” (Elisabete Lopes)
Elisabete Lopes é de uma família numerosa. Eram 25 irmãos e residiam na Costa, em Guimarães. Também ela frequentou a escola primária. “Saí aos 14 anos, pela idade tinha de sair”, assinala, reconhecendo que “passou por passar”. Elisabete tem neste momento 47 anos, é a mais nova dos testemunhos que lhe damos a conhecer. Confessa que em criança não tinha vontade de ir para a escola, mas também nem ela, nem os seus irmãos, foram incentivados nesse sentido. “Hoje arrependo-me, tento que o meu filho não seja assim”.
Conheceu o seu marido, que é professor, e que a incentivou a frequentar o Curso de Alfabetização dos rotários vizelenses. E Elisabete, que na altura era atleta profissional, veio. “Cheguei lá e vi aquelas senhoras todas de idade e fiquei um bocado envergonhada, eu tinha 40 anos, era a mais novinha, as outras eram senhoras para cima dos 60 anos, no primeiro dia cheguei a casa e disse ao meu marido que não ia mais, porque eram pessoas de idade e eu ficava mal, mas aquelas pessoas deram-me um carinho tão grande, acolheram-me como se fosse neta, e desde aí nunca mais as larguei”. “Posso dizer que se hoje sei escrever um bocado, e ler, tem a ver com a turma que apanhei aqui em Vizela”, garante. Este foi o impulso para tirar o 6º ano através das Novas Oportunidades e ainda tentou tirar o 9º, mas ainda lhe faltam 150 horas para concluir.
“Em qualquer sítio que entrava e tivesse de preencher alguns papéis eu sentia-me mal, envergonhada, às minhas colegas, quando tinha de preencher alguns papéis, dizia: não te importas de escrever tu, é que eu tenho uma letra muito feia, mas não era nada, era porque eu não sabia, então escreviam por mim”, afirma.
“O meu filho anda agora na primária, e ele muitas vezes diz: ó mãe! Tu não sabes ler! E eu respondo: sei filho, não sei é ler tão bem como tu”. “Sinto essa dificuldade, às vezes apetece-me chorar, mas não vou chorar à frente dele”. “O meu filho ensina-me, estou a aprender muito com ele, mas sinto muita vergonha, sei que sou nova e tenho amigas da minha idade que sabem, sinto muita vergonha e por ter um marido professor, ele nunca me disse nada, mas sinto vergonha”, confessa.
Bernardete Costa Ribeiro e Armanda Monteiro foram duas das professoras que estiveram ligadas ao Curso de Alfabetização dos rotários. Salvo raras exceções, como o caso da Elisabete, os alunos eram todos de idade já avançada e em comum tinham “vontade de participar e de querer aprender alguma coisa”. “Alguns talvez tivessem o 1º e o 2º ano, mas o que aprenderam estava completamente esquecido, alguns liam alguma coisa, mas escrever era zero”, salienta a professora Bernardete.
“O que mais me impressionou foram adultos que nem o nome sabiam escrever, a alegria e a satisfação deles quando já eram capazes de escrever o nome, já se sentiam muito mais realizados, muitos queixavam-se da dificuldade em ir às compras, porque embora conhecessem o dinheiro, não eram capazes de identificar o preço numa estante e levavam produtos diferentes daqueles que queriam, porque não sabiam distinguir”, lembra ainda.
A professora Armanda reconhece que a maioria eram mulheres que frequentavam o Curso de Alfabetização, que ficou suspenso por altura da pandemia. “Foi uma experiência rica, a facilidade com que se tornaram um grupo de amigos”, conta.
Embora “para alguns o progresso não tenha sido muito”, a professora Bernardete acredita que serviu para “levarem alguma base que os ajudou no dia a dia”, por isso não tem dúvidas de que “todos os projetos para desenvolverem a capacidade, todos eles são ótimos”. “Eles aprenderam uns com os outros, eles próprios se ajudavam”, considera.
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