Política, mercenários, memória e perdão

Eugénio Silva

2018-03-15


Nos anais da política partidária sobejam muitos e diversificados exemplos de processos a propor a expulsão de militantes, acusando-os de traição e deslealdade, com argumentos de terem apoiado candidatos e candidaturas rebeldes, vindo, pouco tempo depois, a exigir aos mesmos militantes o voto incondicional no candidato rebelde do passado. O melhor exemplo encontra-se nas candidaturas de Manuel Alegre à Presidência da República, quando, em 2006 concorreu à revelia do PS e, em 2011, mereceu a candidatura oficial por essa força partidária. Há, também, os que mudam de partido, de forma radical. Como exemplos paradigmáticos, proponho os de Zita Seabra, quando esta abandona o PCP, partido de esquerda e de ideologia marxista/leninista, e ingressa no liberal PSD, um partido de direita, e o do revolucionário Durão Barroso, maoísta, que acaba a abraçar a social-democracia. Louve-se-lhes  a coerência, até hoje, não regressaram. 
Quanto àqueles que, logo eleitos, abjuram o partido, aceitam, depois, integrar listas em fações adversárias e ideologicamente antagónicas e, mais tarde, regressam ao partido de origem, os exemplos tornam-se raríssimos. São tão invulgares e singulares que não recordo nenhum exemplo mediático. Apenas conheci, há muito pouco tempo, um caso deste tipo protagonizado pelo PS-Vizela. Ocorreu-me, entretanto, que estes comportamentos simbolizam o puro mercenarismo político. Mas onde e quem resolve abonar estes camaleões da política? Decidem, de facto, em conclaves restritos e semi-secretos, os barões e as baronesas dos “aparelhos” partidários, divorciados das bases, despreocupados com possíveis impactos de imagens negativas junto do eleitorado, pensando que os cidadãos nada enxergam e cogitando que poderá passar por essa via supostas mais-valias políticas e renovações voltadas para o futuro. Creio ser puro engano. Essas decisões, muito para além de gerar desconfiança e potenciar uma significativa crise de segurança entre muitos partidários e simpatizantes, mostram, pelo contrário, o premiar a impunidade, a desorientação e a evidente ausência de critérios de sensatez e de valores superiores. É um verdadeiro desnorte absoluto.
É suposto que no interior dessas reuniões restritas não se atentará na regra de ouro de qualquer direção: saber para prever e prever para prevenir. Se assim fosse, nunca se cometeria um monumental erro crasso. Saberiam que o “perdão” político de um tão raro e singular caso é um “prémio” e acabará, inevitavelmente, a transformar outros acontecimentos relevantes, nomeadamente uma grave cisão interna protagonizada pelo MVS, em atos e pecados veniais. Saberiam que essa decisão acabará por se constituir em argumento de peso, na “jurisprudência” política necessária para que todos aqueles que, deliberadamente, renegaram o partido (ou venham a renegar) possam sempre regressar. Preveniriam a criação de uma autêntica via rápida, segura e sem portagens a tornar fácil o retorno de todos aqueles que, intencionalmente, abjuraram (ou venham a abjurar) o partido. Mas num colossal e maquiavélico exercício de saber para prever e prever para prevenir, não será mesmo isto que certos e obscuros interesses desejam que aconteça? O tempo futuro encarregar-se-á de validar (ou não) esta conjetura de ocasião.
Mas será que, do interior dessa desordem, pensarão ser possível que todos venham a esquecer agravos políticos? Certamente que não. É que tudo isso implicaria apagar uma memória, aquela que recuperamos quando se pretende olhar os atos do passado repletos de traição e deslealdade. E quando se pretende contextualizar uma história aquela memória é imprescindível para nos situarmos no presente. E essa memória quando está tão presente, tão fresca de recente, até dispensa a confirmação noutros meios de memória. E a História, a séria e verdadeira, anda sempre entrelaçada na procura do rigor e da verdade. Quererão, então, fazer-nos crer que o contrário é que será normal?
Mas será que, do interior desse desnorte absoluto, pensarão ser possível que todos venham a perdoar as afrontas dessa rara qualidade de camaleão político? Certamente que não. É que, para isso, seria necessário que o prevaricador se apresentasse arrependido à sociedade, mesmo para os ingénuos e clementes, os que sabem conceder perdão sem ressentimentos, desprovidos de ódios e de exigências de castigos. Quererão, porventura, fazer-nos crer que perdoar significa fechar os olhos aos erros, fingir que nada aconteceu e, tampouco, desculpar todo e qualquer erro a quem recusa reconhecê-lo contrito? 
Seja ou não seja desta maneira, desejo manifestar, na tripla qualidade de cidadão, político e militante, que não sou dado a perdões e esquecimentos. É que perdoar perdoa quem sabe e pode; e esquecer esquece todo aquele que há muito perdeu a dignidade.